Como as formigas podem te ajudar a decidir o que assistir na Netflix?

     Todos os anos, milhões de estudantes brasileiros participam do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o qual consiste em uma importante porta de entrada em diversas universidades públicas do país. Nesse contexto, haja vista o seu enorme peso na nota final, cria-se uma grande expectativa a respeito da famosa "proposta de redação" da prova, a qual pode ser um motivo de grande alívio (ou de profundo desespero) para os nervosos candidatos. 

    Sendo assim, caso você - assim como eu - tenha participado do Enem 2018, deve se lembrar do seguinte tema: "Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet". Curiosamente, algo de que eu me lembro muito bem a respeito desse é o primeiro dos "textos motivadores", escrito por Daniel Verdú: 



    Dois anos depois, enquanto lia o livro "Emergência: A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares", de Steven Johnson, lembrei-me da descrição dada por esse texto.
    Sendo assim, quando voltei a pesquisá-lo, chamou a minha atenção o trecho "O algoritmo constrói assim um universo cultural adequado e complacente com o gosto do consumidor [...]". Com efeito, após analisá-lo mais profundamente, percebi que esse descreve, de maneira clara e precisa, uma das principais aplicações de sistemas emergentes na atualidade: a criação de softwares que, programados para serem capazes de "ler nossas mentes", estão por trás das curiosas sugestões dadas por plataformas como Netflix, YouTube e Spotify.
    
    Tendo isso em vista, na publicação desta semana, decidi explicar as ideias por trás da formação de sistemas emergentes ou, por outra, os grandes responsáveis pelo fato de a sua aba de "Recomendados" no YouTube estar cheia de vídeos sobre ciência 😊

    O que são sistemas emergentes

    Em termos mais técnicos, um sistema emergente pode ser descrito enquanto um sistema auto-organizável, formado com base em uma lógica denominada bottom-up (ou seja, "de baixo para cima"). Em outras palavras, esses consistem em um conjunto de elementos - os quais podem se estender desde pessoas à linhas de código -, cuja interação é capaz de gerar um comportamento coletivo minimamente organizado (também chamado de macrocomportamento).

    
    
    A fim de deixar essa ideia mais clara, acho interessante diferenciar os conceitos de lógica top-down e bottom-up.

    Um sistema top-down (isto é, de cima para baixo) é caracterizado pela presença de uma hierarquia bem definida, na qual um "líder" é responsável por definir e controlar as regras de conduta de seus "subordinados". Sendo assim, perceba que, na figura acima, a rede é formada a partir de um único ponto, se ramificando a medida que se direciona a níveis inferiores. 
    Se esse conceito ainda está muito abstrato em sua mente, tente imaginar o funcionamento de uma monarquia. O rei, o "líder" da comunidade, impõe as regras a serem seguidas pela sociedade. A nobreza e o clero, por sua vez, encontram-se subordinados às decisões do rei, e impõem regras aos "níveis" mais baixos desta hierarquia social. De maneira análoga, os cavaleiros e senhores, submetidos às vontades do rei, da nobreza e do clero, exercem influência sobre os soldados, os camponeses e os servos - os quais, nesse caso, encontram-se na base da "pirâmide social".
    Essa é exatamente a lógica de um sistema top-down, onde as "ordens" vem, literal ou alegoricamente, de cima para baixo.


    Já em um sistema bottom-up, o macrocomportamento é atingido sem a presença de um "líder". Neste caso, a própria interação constante entre seus diversos elementos individuais cria padrões de comportamento coletivo. Contudo, embora bastante impressionante, semelhante auto-organização não é, simplesmente, fruto de sorte ou mágica, mas exige a presença de quatro componentes básicos dentro do sistema emergente: 

  • Interação entre "vizinhos"
  • Presença de um controle indireto
  • Capacidade de reconhecimento de padrões
  • Presença de um mecanismo de feedback

    A fim de facilitar o entendimento desses conceitos, vamos analisar um pouco mais a fundo o comportamento social de formigas - cujas colônias consistem em um dos tipos de sistema emergente mais estudados, mostrando-se essencial ao entendimento do funcionamento desses.




    Em suma, a comunicação estabelecida entre as formigas dá-se a partir da liberação de feromônios - ou seja substâncias químicas que, quando secretadas, produzem determinadas reações entre outros indivíduos da mesma espécie. Sendo assim, formigas de diferentes funções produzem feromônios dotados de composições químicas específicas, as quais permitem o reconhecimento entre elas. Dessa forma, quando uma formiga coletora entra em contato com uma formiga operária, elas são capazes de reconhecer as funções uma da outra através das características dos feromônios secretados por cada uma. Tal comportamento, por sua vez, é um exemplo de "interação entre vizinhos", o qual permite uma divisão de tarefas relativamente efetiva dentro da colônia.
    Não obstante, as formigas podem, eventualmente, trocar de função, a fim de garantir, por exemplo, o abastecimento e/ou proteção da colônia conforme cada situação. Para isso, essas fazem uso do reconhecimento de padrões, que, junto ao instinto de sobrevivência inerente à colônia - ou seja, um controle indireto gerado pela evolução -, geram feedbacks negativos capazes de controlar a densidade de cada "tipo" de formiga. 
     Tendo isso em vista, imagine que uma formiga coletora sai do formigueiro a fim de colher... Folhas (?) para sua colônia. No caminho, ela sente o feromônio de um número grande - e, ao seu ver, bastante exagerado - de outras formigas coletoras, mas não identifica o feromônio de nenhuma formiga operária. Diante disso, essa formiga coletora passará a ser uma formiga operária, com o intuito de garantir o equilíbrio da colônia.
    Perceba que, em nenhum momento, eu citei a presença de um "líder" ou, neste caso, da formiga rainha. Tal fato evidencia a característica emergente da colônia de formigas, na qual a própria interação entre elas gerou um comportamento coletivo mais complexo.

    Um exemplo de feedback

    Em seu livro "Emergência: A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares", com o intuito de ilustrar o conceito de feedback negativo, Steven Johnson decide explicar, brevemente o funcionamento de um termostato em um aparelho de ar condicionado. Segundo ele:

"Ele faz a leitura da temperatura ambiente, compara-a com a temperatura solicitada e então se ajusta às necessidades. Se o cômodo está mais frio que o desejado, entra ar quente. Se está mais quente, entra ar frio. [...] O sistema usa feedback negativo para atender às condições corretas — e, por essa razão, pode lidar com mudanças acidentais no ambiente."

    Contudo, caso o mesmo termostato se baseasse em um mecanismo de feedback positivo:

"Um termostato imaginário operando com feedback positivo pode avaliar a mudança na temperatura do cômodo e seguir a mesma tendência: se notar que o cômodo ficou mais quente, começa a jogar ar mais quente, levando a temperatura a se elevar cada vez mais, e, com isso, lançará ar ainda mais quente."

    Diante disso, podemos concluir que o feedback negativo é responsável por estabelecer uma condição de equilíbrio em um determinado sistema, ao passo que o feedback positivo tende a gerar condições extremas nesse.

    Os sistemas emergentes e as recomendações da Netflix

    Você provavelmente já deve ter percebido que, depois de pesquisar algo como "mochila escolar" ou "curso de inglês" , o seu navegador ficará repleto de propagandas oferecendo tais produtos e serviços. Ou, ainda, que, ao assistir a 2 ou 3 vídeos a respeito de um determinado jogo, a sua barra de "recomendados" no YouTube irá te indicar uma série de outros vídeos sobre o assunto. 
    Esses e outros fenômenos típicos das mídias digitais devem-se, justamente, a softwares e algoritmos emergentes, baseados na criação de sistemas tipicamente bottom-up.

 

    A fim de entender como isso funciona, proponho a análise do conteúdo que me foi recomendado pela Netflix. Como você deve ter percebido, a maior parte dele consiste em animações e animes. Tal, por sua vez, se deve a comparação entre o meu padrão de comportamento dentro da plataforma com aquele de outras pessoas que, supostamente, apresentam preferências semelhantes às minhas - e que, portanto, também gostam de animações e animes
    Assim, imagine que eu acabo de assistir a todos os episódios de um programa X e, em seguida, comecei a  ver a série Y. O algoritmo da Netflix vai, então, analisar os padrões de comportamento dos milhares - ou milhões - de usuários que, assim como eu, assistiram aos programas X e Y e, com isso, criar uma espécie de "simulação" de minha personalidade. Com base em tais comparações, tal algoritmo irá criar teorias sobre os possíveis "caminhos" que eu poderia seguir dentro da plataforma e, a partir disso, coloca os conteúdos que se encontram dentro desses prováveis caminhos em minha barra de recomendados.
    
    Para comprovar semelhante lógica, proponho uma simples e divertida experiência. Durante algumas semanas, peça para que um de seus amigos acesse - na Netflix ou qualquer outra plataforma de streaming - exatamente os mesmos programas que você. Com isso, se tal raciocínio estiver correto, depois de algum tempo, o algoritmo da plataforma admitirá que vocês apresentam as mesmas preferências e, portanto, deverá recomendar os mesmos conteúdos para ambos. 😀

    Recomendações:

    Caso tenha se interessado sobre o assunto e deseje se aprofundar mais, recomendo fortemente a leitura do livro "Emergência: A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares", de Steven Johnson. Nele, o autor explica os princípios por trás do funcionamento de sistemas emergentes de forma clara e detalhada, e apresenta uma série de exemplos de aplicação desses em nosso cotidiano.

    Além disso, se ficou curioso sobre o comportamento social das formigas, gostaria de recomendar dois vídeos (para acessá-los, basta clicar sobre o título):

    Este vídeo, produzido pelo canal Kurzgesagt – In a Nutshell, explica de forma didática e ricamente ilustrada os princípios por trás da emergência, utilizando como principal base o comportamento de formigas. 

        Nesta palestra, disponibilizada pela TED, a bióloga Deborah Gordon expõe um pouco de seus estudos a respeito do comportamento social de formigas, explicando, em termos mais técnicos, o exemplo exposto na segunda parte desta postagem.


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